O roubo, a discussão ou a publicação de comunicações pessoais, destrói um fundamento básico da Carta Universal dos Direitos Humanos. Ninguém (excepto, talvez, um tirano) tem uma vida privada capaz de sobreviver à exposição pública com intenções hostis.
- Timothy Snyder, professor Universitário de Yale (EUA).
Francisco J. Marques, os teus e-mails são meus
exameinformatica.sapo.ptQuero fazer uma declaração de interesses: eu sou do Sporting. Quase maluquinho, admito, mas não sou parvo.
(...) Terminada esta descrição resumida, é chegada a hora de invocar o homem a quem dou honra de título nesta crónica para lhe colocar uma questão: Francisco J. Marques, achas mesmo que tens o direito, a legitimidade, ou apenas a moralidade para usar a minha caixa de correio electrónico, e desatar a ler os meus e-mails num programa de TV? A sério? Então por que não fazes o mesmo com a tua caixa de correio electrónico?
Fico a aguardar pela resposta, mas digo-te já: enquanto não disponibilizares a tua caixa de correio electrónico – e do plantel, equipa técnica e administração do FC Porto, por que não? – para bodo da populaça num canal de TV, nunca vou acreditar que realmente achas que aquelas descrições de e-mails de dirigentes do Benfica, possivelmente obtidas após intrusão informática, são legais e merecem uma ida ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
Mas antes de tomares uma decisão mais drástica quero explicar-te uma coisa e fazer uma declaração de interesses, porque sei que estou a falar com alguém do futebol e tenho de eliminar à nascença o argumento obtuso do "só dizes isso porque és do clube x ou y": eu sou do Sporting. Quase maluquinho, admito, mas não sou parvo. Acho que o FCP vai mesmo ganhar esta noite e é a equipa que joga melhor no campeonato. E também não sou parvo para achar que a rivalidade futebolística chega para suprimir liberdades e garantias de um cidadão, seja ele do Benfica, do Sporting ou do Alguidares de Baixo.
Por isso, era bem capaz de fazer este mesmo texto com o nome do teus congéneres do Sporting ou do Benfica, se um desses senhores tivesse o desplante de anunciar que iria ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos queixar-se de que a justiça portuguesa aceitou, em segunda instância, uma providência cautelar interposta por outro clube para impedir os programas semanais com a revelação de correspondência alheia. (Eu sei que é um aparte escusado, mas nunca percebi por que é que não fazem o programa junto a uma lareira para dar uma aura mais intimista. É apenas uma sugestão...).
Antes de comprares os bilhetes para Estrasburgo, peço-te que atentes nas seguintes frases: «Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito à protecção da lei»
Este excerto consta na Carta Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1948, quando a GESTAPO já se finara, mas a STASI, a KGB e a CIA trocavam galhardetes e espiões e a PIDE passeava-se sorridente sem receber insultos dos transeuntes. Sim, há uma discrepância entre serviços secretos que se intrometem em tudo e as garantias previstas com a aprovação da Carta Universal dos Direitos Humanos, mas basicamente o princípio sobreviveu até aos dias de hoje – ao contrário da PIDE e da STASI.
Sou um sonhador, mas quero acreditar que, se foi assim, é porque o princípio da inviolabilidade da correspondência é um direito humano importante numa democracia.
É de resto a importância desse mesmo princípio que leva a crer que, no passado, um qualquer jurista verteu para a nossa legislação os seguintes artigos:
«Artigo 193.º
Devassa por meio de informática
1 - Quem criar, mantiver ou utilizar ficheiro automatizado de dados individualmente identificáveis e referentes a convicções políticas, religiosas ou filosóficas, à filiação partidária ou sindical, à vida privada, ou a origem étnica, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
2 - A tentativa é punível.
Artigo 194.º
Violação de correspondência ou de telecomunicações
1 - Quem, sem consentimento, abrir encomenda, carta ou qualquer outro escrito que se encontre fechado e lhe não seja dirigido, ou tomar conhecimento, por processos técnicos, do seu conteúdo, ou impedir, por qualquer modo, que seja recebido pelo destinatário, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias.
2 - Na mesma pena incorre quem, sem consentimento, se intrometer no conteúdo de telecomunicação ou dele tomar conhecimento.
3 - Quem, sem consentimento, divulgar o conteúdo de cartas, encomendas, escritos fechados, ou telecomunicações a que se referem os números anteriores, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias».
Os dois artigos estão presentes no decreto-lei 48/95 que está actualmente em vigor. Diria que estas frases seriam suficientes para qualquer juiz te impedir, caro J. Marques, de publicar os e-mails do rival do teu clube (...) através de um canal de TV liderado pelo FC Porto, cujo estatuto editorial desconheço.
(...)
Não sei se algum juiz também vai considerar estas divulgações válidas e legítimas, mas não tenho dúvidas de que estas iniciativas têm audiência garantida – haja hackers para fazer as intrusões e gente abnegada para dar a informação ao público. Pelo que peço-te só mais um favor: vai quanto antes a Estrasburgo e apresenta a tal queixa a favor da liberdade de divulgação da correspondência alheia. É que já é hora de a justiça portuguesa deixar de ser gozada pelas pessoas do futebol.
Hugo Séneca
twitter.com/SenecaHugo