"No Trio d'Ataque de terça-feira, depois da saída de Rui Moreira (que fez lembrar a fuga do árbitro Paulo Baptista das Antas, quando Pinto da Costa lhe quis oferecer «jantar»), Rui Oliveira e Costa (ROC) disse que as escutas são uma forma de tortura. Disse também que não as discutia porque, cito, «não lavo a cara no bidé», o que faz dele um dos mais completos comentadores desportivos de país: não só perora sobre futebol como, ao mesmo tempo, fornece informações sobre os seus hábitos de higiene. Gosto disso e vou copiar o modelo.
Eu (que não uso canetas Bic para limpar a cera dos ouvidos) também acho que as escutas são uma tortura. Mas para quem as ouve. Perceber que aquelas conversas foram descaradamente ignoradas pelo tribunal é um suplício para mim, (que não palito os dentes com a chave).
Debruço-me apenas sobre alguns segundos destas novas escutas, quando António Araújo fala com um funcionário do FCP e pergunta quem serão os bandeirinhas de Paraty no Gil Vicente-Sporting. Como depois não se aflora mais esse assunto, fui averiguar. Encontrei esta noticia no DN de 7 de Setembro de 2006:
«O Sporting foi outra das equipas que terão sido prejudicadas pelas arbitragens, na época 2003/04(...). No processo Apito Dourado há uma referência ao jogo Gil Vicente-Sporting(a 22 de Fevereiro de 2004), em que se descrevem movimentações antes da partida.(...)
O jogo foi arbitrado por Paulo Paraty e a Policia Judiciária interceptou, dias antes da partida, contactos entre o empresário António Araújo, que mantém negócios com o FC Porto, e um dos auxiliares que fazia equipa com o árbitro do Porto, Devesa Neto. 'Eu depois de amanhã ligo-lhe, que eu precisava de, eu precisava de falar com o Paulo (...) que preciso de lhe dar uma palavrinha, está bem?', disse Araújo a Devesa Neto. Neste mesmo dia, Paraty fala com Devesa Neto ao telefone e, pela conversa, o outro árbitro assistente do jogo, Serafim Nogueira, «iria beneficiar o Gil Vicente e um terceiro clube, o FC Porto», segundo refere o Ministério Público de Gondomar no despacho de arquivamento.
'O Serafim vai vacinado, vai benzido(...) vai benzido pelo lado norte. Bruxo. Vai benzido por dois lados até (...) pelo Minho e pelo norte'. Foi esta troca de palavras entre os dois que levantou suspeitas. Até porque na mesma conversa, Devesa Neto disse: 'Ele também nunca pode fazer muito, o jogo dá na televisão, perceber?'
O jogo acabou empatado (1-1) e o MP afirma que, com este resultado, o Sporting perdeu dois pontos e atrasou-se na luta pelo titulo. No relatório da peritagem ao jogo, são elencados vários lances em que ficaram por punir faltas ao Gil Vicente que poderiam resultar na 'possibilidade do Sporting marcar golo'.»
Apesar do jogo ter dado na TV, o Serafim até fez muito: o Gil Vicente marca o golo num penalty inventado. Lembro que isto se passou na mesma época em que António Araújo, o torturado, ofereceu fruta a Jacinto Paixão a mando de Pinto da Costa; a mesma época em que António Araújo, o mártir, combina a ida do árbitro Augusto Duarte a casa de Pinto da Costa; a mesma época em que António Araújo, o flagelado, diz ao presidente do Nacional que há que «trabalhar» o árbitro, ao que este responde «toca a andar». E parece que andou mesmo.
Portanto, nessa época, quando este empresário se conluia com o bandeirinha dum jogo em que o Sporting viria a ser prejudicado, há comentadores sportinguistas que acham que ele é que é a vítima. É uma espécie de síndroma de Estocolmo, se Estocolmo fosse na Avenida Fernão de Magalhães, no Porto.
ROC diz que as escutas são tortura. Tortura é escutar ROC, que é capaz de passar uma hora a discutir se o árbitro errou ou não, e dizer que não se pronuncia quando se descobre a razão pela qual o árbitro errou. Ainda por cima sabendo que, à conta da trafulhice dessa época de 2003/04, fomos afastados da classificação favorita de ROC, o 2ºlugar. E também da minha, o 1ºlugar. Mas isso sou eu, que não me assoo à fralda da camisa.
No editorial em que responde aos comunicados do Sporting, Alexandre Pais (AP) diz que «Record reage assim com superioridade moral e distância aos recentes comunicados». Normalmente, sabe-se que alguém se guinda a uma posição de superioridade moral pelo tom que usa, pela forma como diz as coisas. Mas em AP a superioridade moral é dupla: não só é intuída, como o próprio assegura que a possui. É uma superioridade moral moralmente superior. Com esta sobranceria redundante, AP elevou a santimónia a um novo patamar. É um moralista num escadote.
Não me surpreende. Em Setembro de 2006, (quando surgiram notícias como a do DN aqui citada), respondi a um inquérito do Record. À pergunta «o que gostaria de ler amanhã no Record?», respondi «uma noticia qualquer sobre escutas e corrupção, que não seja primeiro dada nos jornais generalistas.» Passados uns dias AP escreveu: «José Diogo Quintela disse, nestas colunas, que gostaria de ler amanhã no Record 'uma noticia qualquer sobre escutas e corrupção que não seja primeira dada nos jornais generalistas'. Trata-se de um desejo difícil de concretizar, pois quando o futebol perder de todo a credibilidade - traído por aqueles a quem dá de comer - aos generalistas não faltarão outros temas para exibir barba rija. Mas, morto o futebol, o Record perderá a razão de existir. Que mexam no lixo que os tribunais largaram. Nós pertencemos a um circo que vive de emoções - de golos e de erros, títulos e de frustrações. E não temos vergonha disso.»
Assim fiz. Continuei a mexer no lixo do Apito Dourado, enquanto AP continuou a pertencer aos «circo que vive de emoções», não traindo quem lhe «dá de comer». Sem vergonha, como o próprio admite, Mas com estupenda superioridade moral, claro."
José Diogo Quintela, in A Bola
José Diogo Quintela, in A Bola